Para
os Balantas da Guiné roubar gado, especialmente vacas, não é um acto vergonhoso,
mas sim um acto de coragem, ainda mais valorizado, se não se for apanhado e não
matar ninguém. Samine era um Balanta-Bravo, alto, magro, musculoso, orgulhoso,
indisciplinado e corajoso. Para além de guia ao serviço do COP3, com uma G3
distribuída que mantinha sempre impecavelmente limpa, era um exímio e conhecido
ladrão de gado.
Acompanhou
o destacamento em várias operações. Era um guia conhecedor do terreno, eficiente
e aguerrido, mas ficava sempre mais excitado e distraído da tarefa que estava a
desempenhar quando sabia ou sentia que andavam vacas por perto. Nessas ocasiões
parecia esquecer-se da direcção do objectivo para onde o Destacamento se devia
dirigir e, instintivamente, seguia em direcção às vacas. Era preciso estar
sempre muito atento ao comportamento do Samine quando o levávamos como guia. Se
ele começava a mostrar muito entusiasmo ao abrir o caminho, a alargar o passo e
a fazer desvios, tínhamos de olhar com muita atenção para a bussola e a carta
sob o risco de irmos parar a um local onde se encontrava uma manada de vacas.
Exprimia-se num crioulo muito particular em que a palavra que melhor conseguia
fazer compreender era vaca. Mas era senhor de uma linguagem gestual muito
expressiva.
Com
o beneplácito ou o fechar de olhos do Comandante do COP 3, ia algumas vezes com
um grupo de Balantas ao Senegal roubar vacas. O que fazia por lá nunca o
cheguei a saber, mas quando chegava a Bigene com uma ou duas dezenas de vacas,
vendia uma parte à companhia do Exército e descia depois a Ganturé para nos
vender as que sobravam. Era um bom negócio para ele, para os seus balantas e
também para nós.
Um
dia convenceu o major a deixá-lo ir com o seu grupo à margem Sul apanhar umas vacas
que andavam por perto das margens do rio Cacheu. O major pediu-nos ajuda para
realizar a operação. Uma LDM e alguns botes com fuzileiros foram designados
para essa missão. Lá os fomos largar a meio da noite e combinamos um ponto de
recolha para a manhã do dia seguinte. E no local e hora combinada lá estavam o
Samine, os seus balantas e umas duas dezenas de vacas junto à margem, à espera
do embarque. Foi uma carga de trabalhos obrigar as vacas a entrar na água e
subir a porta da LDM, onde só entraram à força, puxadas e empurradas. Como não
couberam todas na LDM algumas tiveram de vir nos botes e aqui as coisas foram
mais complicadas. As vacas tiveram de ser obrigadas a entrar na água e depois
puxadas para dentro dos botes. Não gostaram, escoicearam e alguns fuzileiros
foram parar à água. Uns botes acabaram por optar trazê-las a reboque, mas
algumas vacas acabaram por morrer afogadas. Para as que escaparam, a explicação
que os veteranos me deram e eu vou vendê-la exactamente pelo mesmo preço, é que
as transportaram ao lado do bote, puxando-lhes o rabo para cima e mantendo o orifício
traseiro fora de água. Segundo esta explicação as vacas não se afogam por lhes
entrar água pela boca, mas sim pelo outro lado.
Achava
piada ao Samine, ao seu jeito desenrascado e à forma ligeira, despreocupada e
alegre como parecia encarar a vida. Numa das primeiras operações em que me
serviu de guia, as indicações que deu até atingirmos o objectivo foram
correctas. Depois de assaltarmos o objectivo, quando nos dirigíamos para o
ponto de reembarque, comecei a aperceber-me que a direcção que seguíamos se
desviava do ponto de reembarque que tinha definido. Chamei várias vezes a
atenção do oficial que ia na frente da coluna para corrigir o rumo, mas o
destacamento acabava sempre por se desviar do caminho que queria seguir. Por
fim, já irritado com os desvios, mandei parar o destacamento e fui à frente ver
o que se estava a passar. Acabei por perceber que, apesar das indicações constantes
do oficial, o Samine se desviava sempre com a desculpa de que o caminho era
melhor por ali. Falei com o Samine que, depois de algumas desculpas mais ou
menos esfarrapadas, acabou por confessar, com um ar matreiro e sorridente, que
ali, á frente, um pouco para a direita e perto do rio havia vacas. Como não havia
grandes diferenças entre um percurso e o outro e não previa também reacções hostis
por parte dos guerrilheiros que deviam andar por outros lados e com outros
problemas para resolver, dei autorização ao Samine para passar pelo lugar onde
estavam as vacas e comuniquei à LDM a mudança do ponto de reembarque.
Chegamos
facilmente ao local onde se encontravam as vacas. O Samine e os seus balantas
separaram rapidamente algumas para levarem. A situação acabou por se
descontrolar um pouco porque também alguns fuzileiros resolveram mostrar a sua
costela camponesa e não resistiram também capturar e encaminhar mais algumas
vacas que agora engrossavam a nossa coluna.
O
resto do percurso até ao reembarque na LDM, embora curto e sem percalços é
dificilmente descritível tal a dificuldade em fazer com que as vacas avançassem
de forma ordenada pela bolanha alagada e lodosa até ao local onde nos esperava
a LDM. Aumentado com um considerável número de vacas indisciplinadas e
barulhentas, retiradas à força do seu meio, pressentindo o que lhes viria a
acontecer e que resistiam como podiam a cada passo que eram obrigadas a dar, o
Destacamento desorganizou-se e aquilo que deveria ser uma coluna acabou por se
transformar num conjunto de vários grupos a puxarem e empurrarem vacas para a
margem do rio. Ainda hoje recordo as expressões de espanto do patrão e do
pessoal da LDM, quando, finalmente, entrei a bordo com o pequeno grupo que
tinha ficado para trás a montar segurança. Quanto a mim, pelo menos por uma
horas, senti-me Balanta.
A
divisão do espólio da operação não foi fácil. O Samine considerava que todas as
vacas eram presas dele, mas o pessoal do Destacamento, eu incluído, também nos
sentíamos com direito a uma parte do saque. Alguns fuzileiros tinham logo
encaminhado uma vaquinha para junto do respectivo abrigo e lá a amarraram com
toda a segurança. O cabo do rancho, que aparecera imediatamente na ponte-cais, reclamava
também os seus direitos. O Samine protestava e queria receber a paga por todas
a vacas recolhidas. Assumindo-me como parceiro no roubo das vacas, discuti
longamente com o Samine o direito que nos assistia e acabamos por acordar numa
divisão mais justa e equitativa do saque. Levou com ele para Bigene as vacas que
lhe couberam e negociou-as com a companhia do Exército. Uma das nossas vacas oferecemo-la
à guarnição da lancha para a compensar do trabalho e do estado em que tínhamos
deixado o porão.
O
Samine não teve um fim feliz. Um dia apareceu a caminhar em direcção à base vindo
pela bolanha que nos servia de carreira de tiro, terreno que estava absolutamente
interdito a qualquer passagem por ser provável lá se encontravam granadas e
projécteis que não explodiam quando se experimentavam as armas. Apesar dos avisos,
dos berros e gestos do pessoal que se encontrava por perto, para sair do local
e mudar de direcção, continuou a caminhar para o aquartelamento agitando numa
das mãos um objecto que tinha encontrado. De repente o objecto explodiu e o
Samine desapareceu. Era, simplesmente, uma granada de bazuca que ele tinha
encontrado meio enterrada no lodo.