Estávamos
já na fase final da nossa comissão na Guiné. O DFE 8 estava sedeado em Ganturé.
A actividade do PAIGC vinha a crescer nos últimos tempos, manifestando-se pelo
aumento do número de cambanças detectadas e interceptadas no rio Cacheu e
também pelos vestígios da passagem de colunas logísticas e da presença de grupos
armados no corredor do Sambuiá onde, embora não os encontrássemos muitas vezes pela frente nos
nossos frequentes patrulhamentos e também eles não nos emboscassem, a nossa
presença na área era sempre assinalada com tiros de aviso.
Um
dia, a meio da manhã, sou chamado para ir com urgência falar com o Comandante
do COP 3 no campo de aviação. Quando lá cheguei encontrei-o a conversar com um
oficial da Força Aérea que aterrara pouco antes, depois de ter feito um
reconhecimento aéreo na região do corredor do Sambuiá e Guidage. O que
avistara, vestígios de muita movimentação de pessoal e material junto da
fronteira, já dentro do território da Guiné, indicava estar a preparar-se uma próxima
cambança para o interior do território e, por isso, resolvera dar conhecimento
de viva-voz ao responsável do sector.
Depois
de me terem assinalado na carta os locais onde se situavam os sinais das
movimentações, o Comandante do COP deu-me instruções para o Destacamento fazer,
nessa noite, uma operação com o objectivo de bater a zona e capturar o pessoal
e material que estivessem a preparar para a cambança.
Regressado
à base, começamos a planear a operação e achamos por bem reforçar o armamento
do Destacamento com mais duas MG42 do que o habitual, mas não as tínhamos
disponíveis na Base. Como nesse dia à tarde, vinha a Bigene o avião da Marinha
trazer o correio, enviei para o Comando da Defesa Marítima uma mensagem de
elevada precedência e em claro, solicitando o envio de duas MG42 nesse avião.
E, realmente, apesar do pouco tempo que mediava entre o pedido e a saída do
avião, o armamento chegou a Bigene nessa tarde.
Planeamos
a saída do destacamento de forma a desembarcarmos antes da meia-noite para fazermos
uma aproximação cautelosa e sem sermos detectados ao local onde se encontraria
concentrado o pessoal e material do PAIGC. Como era hábito, o pessoal preparava-se
nos seus abrigos e, um a um, iam chegando ao bar onde, conversando e bebendo
uma cerveja, esperavam pela hora do briefing que fazia sempre, antes da partirmos
para a ponte-cais onde embarcaríamos para a operação. Eu, costumava vestir-me e
preparar-me com muito tempo de antecedência, ir até à messe tomar um café,
beber um whisky e fumar uma cachimbada, enquanto ia olhando para a carta e
tentando prever o que poderia acontecer. Quando tudo estava pronto, o Imediato
vinha chamar-me e seguia com ele para o briefing.
Estava,
então, nesse momento de reflexão e espera, quando o telegrafista me traz uma
mensagem do CDMG. Nela, informa-se que o armamento pedido fora enviado no avião
e solicita-se que justifique o pedido. Àquela hora da noite, prestes a sair
para o mato, não me apetecia nada responder à mensagem e pensei em deixar isso
para o dia seguinte depois de regressar da operação, tanto mais que a mensagem
tinha a precedência mais baixa. Mas o telegrafista que devia ter tomado
conhecimento do seu teor ao recebê-la, ficou parado à minha frente com o bloco
de mensagens na mão, à espera de uma resposta.
O
autor do pedido de justificação era, naturalmente, o Chefe do Estado-Maior do
CDMG. O nosso curso, tinha-o conhecido bem como Comandante da Companhia de
Alunos da Escola Naval. O Comandante Lencastre, desde que chegou à Guiné, já a
comissão do Destacamento ia adiantada, foi um forte e permanente apoio com que
os Fuzileiros sempre contaram. Preocupava-se com as nossas necessidades,
informava-se das dificuldades que enfrentávamos no relacionamento com os
Comandos Operacionais, tinha sempre em consideração as nossas dificuldades
administrativas. Os relatórios das operações que enviávamos, para informação,
ao CDMG e que, até aí, não tinham qualquer feedback, passaram a ser objecto de
uma informação de retorno, muitas vezes crítica quanto à nossa actuação, mas que
nos ajudava junto dos Comandos Operacionais a defendermos pontos de vista sobre
a utilização dos fuzileiros que não eram em geral tidos em conta. Em resumo, a
sua chegada à Guiné, significou, pelo menos para mim, o abrandamento do sentimento
da que a Marinha se alheava dos Fuzileiros, fazendo-nos sentir um fardo que só
criava dificuldades e perturbava o normal funcionamento dos serviços. No
entanto, é preciso acrescentar que, compreendendo as nossas dificuldades, as
nossas falhas e procurando satisfazer as nossas necessidades, o Comandante
Lencastre era extremamente rigoroso e exigia sempre da nossa parte uma
explicação cabal para as solicitações que fazíamos ou as falhas e erros que
cometíamos. Por isso compreendi imediatamente que ao receber o pedido de mais
armas, mesmo sabendo que o destacamento estava nessa ocasião com a sua dotação
completa, não teve qualquer hesitação em accionar a pedido, mas, imediatamente,
também exigiu uma justificação.
Depois
de preencher o cabeçalho da mensagem, fiquei bloqueado na redacção do texto
justificativo, não me vinha à cabeça uma resposta suficientemente curta e
lógica para esclarecer a necessidade e justificar aquele pedido inopinado de
mais armamento. Entretanto, entra na messe o Imediato que informa que o pessoal
está pronto. Tinha de me despachar depressa e as palavras não me apareciam. Até
que, num impulso acabei por escrever o texto da mensagem: "SEU …
OBVIAMENTE VAMOS ANDAR A PORRADA COM ELES". Assinei, entreguei o bloco de
mensagens ao telegrafista, peguei na G3 e fui para o bar fazer o briefing.
Contaram-me,
uns dias depois, numa curta ida a Bissau, que o Comandante Lencastre recebeu bem-humorado
a resposta e até andou a mostrá-la a alguns camaradas, observando que era o que
podia acontecer quando se faziam perguntas deslocadas e fora de tempo
(perguntas parvas, assim me relatou um camarada). Quando me fui apresentar, recebeu-me
com um sorriso irónico e uma frase: “obviamente … as armas não servem para
outra cousa!”.
Muitos
anos depois, já almirante e reformado, quando vinha à Academia da Marinha,
subia muitas vezes ao andar de cima e vinha até ao meu gabinete no CNED
conversar, recordando algumas das situações vividas naquelas terras. Entre
outras, gostava, especialmente, de recordar esta mensagem, o aparecimento e as aventuras
do burro Comodoro e uma rocambolesca história que designava, ironicamente, como
a revolução marxista da Ganturé, que espero contar um dia (se a tanto me ajudar
o engenho e a arte).