segunda-feira, 23 de junho de 2008

Tratado de Lisboa pode esperar

Veio de Dublin o último desafio lançado à UE, com a recusa de ratificação do Tratado de Lisboa resultante do veredicto popular – numa União que teimou em promover a diferença entre os seus cidadãos ao conferir apenas aos irlandeses (e por imperativo constitucional) um direito de pronúncia sobre um seu texto de natu­reza estruturante e fundamental. Por muito que os chefes de Estado e de governo hajam acordado em cer­cear esse direito a todos os demais cidadãos europeus, os irlandeses resolveram tomar nas suas mãos o futuro institucional da Europa e interpretar aquele que supostamente seria o sentido de voto de muitos outros cidadãos se os mesmos tivessem tido idêntica possibilidade de se pronunciar sobre o Tratado por­reiro. E assim criaram nova encruzilhada para a qual, reconhecidamente, a UE não estava preparada. Não só inexistia qualquer «Plano B» como o próprio Conselho Europeu acabou por demonstrar o quão imprepa­radas estavam as instituições europeias para um cenário como o que acabou por se verificar. Impõe-se, assim, por antecipação e com o risco que tal exercício comporta, tentar divisar quais os caminhos possíveis que a União poderá trilhar no pressuposto óbvio de que qualquer Tratado, para entrar em vigor, por muito porreiro que seja, terá sempre de ser aprovado por todos os seus 27 Estados Membros.
A primeira via passará pela repetição do referendo irlandês sem promover qualquer alteração ao Tratado de Lisboa. Será a solução mais fácil e mais cómoda para a UE; não se afigura, todavia, muito viável pelo ambiente político existente e também porque teria dois graves inconvenientes: acentuaria a desigualdade entre os Estados-Membros da UE porquanto idêntica repetição não foi imposta à França e à Holanda quando ambas recusaram a Constituição europeia; e desqualificaria definitivamente o instituto do referendo em matérias europeias, dado que faria passar a ideia de que tais referendos só seriam válidos se dessem um determinado resultado.
O segundo caminho possível passará pela abertura de negociações com a República da Irlanda visando obter alterações ao Tratado de Lisboa por forma a que o Tratado que possa voltar a ser sujeito a referendo naquele país seja materialmente diferente do que já foi referendado. Tratar-se-á, porém, de uma solução de difícil concretização – o Tratado foi o mínimo denominador comum a que chegaram os Estados-Membros da UE, para o qual todos tiveram de fazer cedências. Reabrir as negociações em benefício de um único Estado poderá equivaler a abrir uma caixa de Pandora donde não se sabe o que poderá sair, havendo a possibili­dade de desconstruir equilíbrios alcançados. Acresce que, se o Tratado for – ainda que ligeiramente – alte­rado, que acontecerá às ratificações já promovidas em 18 Estados Membros? As mesmas teriam incidido sobre um Tratado que já não existia, que teria sido alterado. A lógica jurídica mandaria repetir tais ratifica­ções.
O terceiro e mais radical caminho passará pela assunção da «morte jurídica» do Tratado de Lisboa, por falta de verificação de uma condição indispensável à sua produção de efeitos jurídicos: a ratificação por todos os Estados signatários – com reabertura de uma nova CIG visando rever e alterar os Tratados em vigor. Tratar-se-á, obviamente, de uma solução extrema e radical que equivalerá a mais uma perda de tempo irrecuperá­vel por parte da UE que daria mostras de permanecer refém de si própria e dos seus Estados-Membros, enredada em questões institucionais e de repartição de poder enquanto «lá fora» o Mundo passa por ela a correr, e ela se mostraria incapaz de dar resposta às questões com que esse mesmo Mundo a interpela de forma cada vez mais intensa.
Ao contrário de qualquer um dos caminhos citados, o último Conselho Europeu, sem o assumir claramente, parece ter optado por «decretar» uma nova pausa para reflexão, à semelhança do que ocorreu após os referendos francês e holandês, a par, da continuação dos processos de ratificação por parte dos Estados Membros que ainda não ratificaram o Tratado. Em boa verdade não se terá tratado de uma solução para o problema em questão mas de um adiamento de uma solução. A finalidade, porém, percebe-se: isolar politi­camente a República da Irlanda por forma a que se chegue a um momento em que apenas falte a ratifica­ção dos irlandeses, eventualmente em vista da repetição do referendo. Acresce, todavia, uma dificuldade eventual suplementar: não está dito nem escrito que outros Estados não possam querer aproveitar o suce­dido na República da Irlanda para travar os seus próprios processos de ratificação interna e com isso ques­tionar definitivamente o Tratado de Lisboa. À esquerda e à direita não faltaria quem rejubilasse com tal cenário. Está por demonstrar, todavia, que fosse essa a melhor solução para o projecto europeu

J.P.Simões Dias

Será publicado em 24.06.08(amanhã) no semanário "O Diabo)

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