Um reencontro feliz
Não costumo escrever diários, mas de vez em quando e por períodos curtos vou escrevendo algumas notas, que vou guardando em dossiers, às vezes datados. Num breve texto, de finais de 1971, quando o DFE8 se encontrava em Ganturé, encontrei esta pequena frase: “Encontramos hoje, no Tiligi, a bajuda do Joaquim. Pelo menos, a operação serviu para reunir uma família”. Desta frase e do que sobrou na memória, nasceu o texto abaixo.
Joaquim
era um balanta que tinha sido capturado numa operação na área do Tiligi, na
margem Sul do rio Cacheu. Foi viver para junto de familiares, também eles deslocados,
na Tabanca Nova, um reordenamento junto da base de Ganturé. Joaquim não era o
seu nome, mas foi o nome que o pessoal percebeu nos primeiros contactos e era
por ele que respondia. Tinha um aspecto físico que impressionava. Alto,
musculoso, sempre de cabeça levantada. Uma cara larga, simpática, quase sempre
com um sorriso. Num assalto a um acampamento de casas de mato escondido na mata,
quando a população fugia desordenadamente, ele e mais alguns moradores
deixaram-se ficar para trás e foram apanhados. A partir da altura em que lhe
designaram um lugar na coluna mostrou-se confiante e colaborante. Aceitou imediatamente
o saco de primeiros socorros que o Boticas lhe passou. Pouco depois levava
também, bem agarrado debaixo de um braço, um leitão apanhado por um marinheiro.
Como
conhecia bem a área, o major Comandante do COP 3 tentou aliciá-lo para guia das
unidades militares quando se faziam operações na margem sul do rio Cacheu. Fê-lo
poucas vezes porque, apesar do dinheiro que ganhava com esse trabalho, tornou-se
evidente a sua pouca vontade e constrangimento em participar nas operações que
levavam a guerra para as suas anteriores terras. Aparecia muitas vezes pela
base de Ganturé para cumprimentar, pedir alguma ajuda e desabafar sobre um dos
problemas que mais o afligia. A sua bajuda, assustara-se e fugira para o mato quando
o acampamento fora assaltado e ele queria trazê-la para viver com ele. Pedia-me
insistentemente para fazer lá uma operação e o levar para a ir buscar. Tinha o receio,
que repetia frequentemente, de que a bajuda, que era nova e bonita e de quem
gostava, o esquecesse e trocasse por outro. O tempo foi passando. Apesar de por
vezes pensar em satisfazer-lhe o pedido, os imperativos de acção na zona iam
atrasando a possibilidade de voltarmos à região da sua antiga morança e isso
ia-o tornando dia a dia mais triste e melancólico.
Até
que, finalmente, a ocasião chegou. Não o avisei antes da operação e só depois
do jantar o foram buscar à Tabanca Nova. Quando chegou disse-lhe para se
preparar para ir para o mato connosco e para onde íamos. Os olhos brilharam-lhe
de satisfação e abriu-se-lhe um sorriso de todo o tamanho. Desembarcamos e o
primeiro objectivo foi a sua antiga morança. O Joaquim tomou o primeiro lugar
na coluna e foi das poucas vezes em que depositei absoluta confiança no guia.
Apesar de o obrigar a seguir fora dos trilhos, a corta-mato, quase não
consultei a carta e olhei para a bússola. Nunca o Destacamento andou tão
depressa como naquela ocasião. Chegamos perto do acampamento era ainda noite
cerrada. Apesar de ser, de algum modo, imprudente e de arriscar a que o
destacamento fosse detectado, tinha combinado com o Joaquim que o deixaria
tentar chegar junto da bajuda antes de desencadear o assalto. Teríamos ainda bastante
tempo para os primeiros alvores e, de qualquer modo, não esperava que o PAIGC tivesse
muitos guerrilheiros por aquelas bandas.
Estacionamos
o destacamento, montamos uma segurança apertada e o Joaquim partiu sozinho,
depois de combinarmos o lugar por onde devia regressar e o sinal para nos
avisar da sua aproximação. Ao fim de meia hora o Joaquim, acompanhado pela bajuda
e a sogra apareceram sem qualquer sinal e por uma direcção diferente da
combinada. Só escaparam de ser abatidos porque o pessoal estava bem treinado.
Com a alegria de ter encontrado a sua bajuda esquecera-se completamente do
combinado. Felizmente, o pessoal que estava de vigia deixou que o grupo se aproximasse
e reconheceram-no.
Trazia
informações de que na tabanca não se encontrava pessoal armado pelo que decidi não
a assaltar, contorná-la e seguir para um outro objectivo. O Joaquim seguiu para
a frente da coluna nas suas funções de guia enquanto a bajuda, que se chamava
Sábado e era realmente muito bonita e a sogra ficaram incorporadas na coluna
algumas posições atrás de mim. Numa paragem o Joaquim veio até junto dela e, ao
vê-los juntos, tive por momentos um sentimento de inveja e frustração por todos
nós nos encontrarmos tão longe de quem nos era caro.
Enquanto
estivemos em Ganturé o Joaquim nunca mais me serviu de guia. Era corajoso e
seguro, conhecia muito bem a região, mas via-se bem que o fazia contrariado. Acabou
por conseguir alguma terra para cultivar e foi organizando na vida. Nos
primeiros tempos, se não fossem as ajudas que lhe dávamos e algum dinheiro por
fora, teria possivelmente passado muito mal. Mas depressa começou a ter
colheitas, a criar alguns animais e a ter uma vida mais estável.
Entretanto
o destacamento foi deslocado para outras bandas e só regressamos ao fim de alguns
meses. O Joaquim esperava-me na ponte-cais de Ganturé. Feliz, informou-me logo
que a Sábado estava grávida.
Esta
é uma pequena história, quase uma não história, no meio de uma guerra e de uma
disputa política. Um homem e uma mulher acabam por optar por deixar de viver
numa das margens do rio Cacheu, território controlado pelos que lutavam pela
independência e expulsão das tropas coloniais, para se mudarem para a outra
margem que essas tropas dominavam e controlavam. Alguns pretenderão inferir
daqui generalizações políticas e históricas em relação à época e ao problema
colonial. Possivelmente, poderíamos fazê-lo tanto mais que havia gente que
suspeitava que o Joaquim poderia ser simpatizante do PAIGC e eu próprio não
tinha grandes dúvidas que continuava a manter ligações com familiares que se
mantinham na margem Sul. Mas estávamos numa guerra contra-revolucionária, em
que um grupo de militares portugueses estacionavam por um período curto numa
terra que lhes era estranha enquanto a população que por lá habitava tinha elos,
ligações e disputas que duravam há séculos. Viver com estas contradições era o
quotidiano naqueles tempos e naquele tipo de guerra. Para além disso, sabíamos
e tinha-o ouvido nas palavras do próprio General Comandante Chefe na cerimónia
da recepção do Destacamento, que a guerra estava já num estádio em que não havia
solução militar e Portugal teria de encontrar uma saída política para o
problema colonial. O que este casal, como milhares de casais que sem vêm no
meio de uma guerra que não compreendem e não a sentem como deles, ou que não
querem participar nela com armas na mão quis, foi encontrar um lugar para viver
e criar os seus filhos com alguma paz e segurança. E, apesar de tudo, na
Tabanca Nova, ali perto da base dos fuzileiros, a vida acabava por ser bem mais
calma e segura do que no seu acampamento no Tiligi, escondido no meio do
arvoredo, para onde os obuses de Bigene disparavam, os aviões lançavam bombas, onde
os guerrilheiros do PAIGC, que viviam lá por perto, apareciam e também não os
deixavam viver em paz. E, quando os fuzileiros resolviam aparecer havia guerra com
os guerrilheiros e eles, a população, tinham de fugir e de se esconder na mata
até a calma voltar.
Em
jeito de nota, algumas palavras sobre populações e reordenamentos na Guiné.
As
populações, numa guerra revolucionária como a que travamos na Guiné, são o alvo
principal que um e o outro lado pretendem conquistar e manter sobre o seu
controlo. Os reordenamentos de populações não foram uma das prioridades da política
colonial do General Spínola, mas existiam e promoveram-se alguns durante o seu
consulado. Nos primeiros anos as suas políticas causaram algumas dificuldades no
desenvolvimento da estratégia do PAIGC que, em resposta, endureceu a guerrilha.
Só superficialmente estudei o problema dos reordenamentos, mas durante a
comissão tive algumas vezes de lidar com ele e de fazer opções. Conheci durante
a comissão, entre 1971 e 1973, dois reordenamentos, o da Tabanca Nova, entre
Bigene e Ganturé, onde se situava a base dos fuzileiros, já estabilizado e com
as vidas dos seus habitantes mais ou menos organizadas e os primeiros tempos do reordenamento de Gampará, em que as
populações que não se refugiaram na área controlada pelo PAIGC, ainda viviam em
acampamentos improvisados à volta do acantonamento das nossas tropas, enquanto
se construíam as suas futuras casas.
Visitava
com alguma frequência a Tabanca Nova. A população, de várias etnias, vivia
pobremente, mas eram pouco incomodados pelas incidências da guerra. Vinham com
alguma frequência à enfermaria da base procurar a ajuda do enfermeiro e prestavam-nos
alguns serviços. Que me lembre, só por uma vez caíram lá por perto alguns
foguetões. Era bem recebido quando lá ia, as pessoas falavam comigo sobre
assuntos triviais e assisti a alguns roncos (festas em que o que de mais
visível acontecia eram cantos e danças comemorando algum acontecimento). Os
miúdos da Tabanca Nova entravam e saíam à vontade na base e andavam por todo o
lado sem constrangimentos aguardando o fim das nossas refeições para se
alimentarem. O pessoal tratava-os geralmente bem e só uma vez tive de mandar
parar uma brincadeira de um marinheiro que estava a dar uma divertida instrução
de ordem unida aos putos que se prolongou para além do razoável. Não tinha
dúvidas que o PAIGC tinha ligações com elementos da Tabanca Nova, que algumas
das lavadeiras que regularmente vinham trazer e levar roupa passavam voluntária
ou involuntariamente informações. Por isso, mantinha algumas regras de
segurança, uma das quais era a de só comunicar o objectivo das operações a um
grupo muito restrito de elementos do Destacamento e mantê-lo reservado até ao
momento do breefing. De qualquer forma, era muito difícil disfarçar para o
exterior quando ia haver uma operação porque os preparativos do pessoal acabavam
sempre por ser visíveis.
As
populações capturadas eram normalmente encaminhadas para junto de familiares ou
de elementos das suas etnias em Bigene ou na Tabanca Nova. Nos primeiros tempos
da comissão quando aprisionávamos elementos da população entregava-os ao
Comando Operacional e procurava acompanhar a sua primeira fase de adaptação,
embora essa não fosse uma competência do Destacamento. Alguns prisioneiros foram
maltratados para se obterem informações e isso incomodou-me. Outros acabaram
por se estabelecer e encontraram formas de levar uma vida normal. Outros ainda,
ao fim de algum tempo, perdíamos-lhes o rasto e desapareciam, conseguindo
possivelmente voltar às suas antigas povoações. Ao fim de algum tempo na Guiné,
tendo passado a conhecer como funcionavam os processos de relacionamento com as
populações e dos reordenamentos, sempre que fazíamos prisioneiros civis passei,
na altura do reembarque, a dar-lhes a opção de ficarem ou virem connosco. As
reacções foram diversas. A maior parte resolvia ficar, correndo imediatamente
para a mata, às vezes com manifestações efusivas de alegria, mas alguns vinham
connosco de livre vontade.
5 comentários:
Estória enternecedora!
Muito bem, Selva!
Continua nestas águas onde tão bem navegas...
Um forte abraço
Relato de um “guerreiro “ humano. Mostra o outro lado do militar numa guerra de guerrilha. Obrigado pelo teu escrito. Será bom que os nossos netos leiam isto.
Um enorme Abraço
Selva; não deixes de passar para o papel estas tuas excelentes estórias e organiza-as tanto quanto te fôr possível, para além do prazer que nos dás em lê-las aqui.
Um grande abraço.
Mais uma instrutiva "estória" ... muito bem!
Um texto muito interessante e muito bem escrito a recordar o rio Cacheu, por onde tantos de nós navegamos.
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