terça-feira, 1 de junho de 2021

Um reencontro feliz

  Não costumo escrever diários, mas de vez em quando e por períodos curtos vou escrevendo algumas notas, que vou guardando em dossiers, às vezes datados. Num breve texto, de finais de 1971, quando o DFE8 se encontrava em Ganturé, encontrei esta pequena frase: “Encontramos hoje, no Tiligi, a bajuda do Joaquim. Pelo menos, a operação serviu para reunir uma família”. Desta frase e do que sobrou na memória, nasceu o texto abaixo. 

 

Joaquim era um balanta que tinha sido capturado numa operação na área do Tiligi, na margem Sul do rio Cacheu. Foi viver para junto de familiares, também eles deslocados, na Tabanca Nova, um reordenamento junto da base de Ganturé. Joaquim não era o seu nome, mas foi o nome que o pessoal percebeu nos primeiros contactos e era por ele que respondia. Tinha um aspecto físico que impressionava. Alto, musculoso, sempre de cabeça levantada. Uma cara larga, simpática, quase sempre com um sorriso. Num assalto a um acampamento de casas de mato escondido na mata, quando a população fugia desordenadamente, ele e mais alguns moradores deixaram-se ficar para trás e foram apanhados. A partir da altura em que lhe designaram um lugar na coluna mostrou-se confiante e colaborante. Aceitou imediatamente o saco de primeiros socorros que o Boticas lhe passou. Pouco depois levava também, bem agarrado debaixo de um braço, um leitão apanhado por um marinheiro.

Como conhecia bem a área, o major Comandante do COP 3 tentou aliciá-lo para guia das unidades militares quando se faziam operações na margem sul do rio Cacheu. Fê-lo poucas vezes porque, apesar do dinheiro que ganhava com esse trabalho, tornou-se evidente a sua pouca vontade e constrangimento em participar nas operações que levavam a guerra para as suas anteriores terras. Aparecia muitas vezes pela base de Ganturé para cumprimentar, pedir alguma ajuda e desabafar sobre um dos problemas que mais o afligia. A sua bajuda, assustara-se e fugira para o mato quando o acampamento fora assaltado e ele queria trazê-la para viver com ele. Pedia-me insistentemente para fazer lá uma operação e o levar para a ir buscar. Tinha o receio, que repetia frequentemente, de que a bajuda, que era nova e bonita e de quem gostava, o esquecesse e trocasse por outro. O tempo foi passando. Apesar de por vezes pensar em satisfazer-lhe o pedido, os imperativos de acção na zona iam atrasando a possibilidade de voltarmos à região da sua antiga morança e isso ia-o tornando dia a dia mais triste e melancólico.

Até que, finalmente, a ocasião chegou. Não o avisei antes da operação e só depois do jantar o foram buscar à Tabanca Nova. Quando chegou disse-lhe para se preparar para ir para o mato connosco e para onde íamos. Os olhos brilharam-lhe de satisfação e abriu-se-lhe um sorriso de todo o tamanho. Desembarcamos e o primeiro objectivo foi a sua antiga morança. O Joaquim tomou o primeiro lugar na coluna e foi das poucas vezes em que depositei absoluta confiança no guia. Apesar de o obrigar a seguir fora dos trilhos, a corta-mato, quase não consultei a carta e olhei para a bússola. Nunca o Destacamento andou tão depressa como naquela ocasião. Chegamos perto do acampamento era ainda noite cerrada. Apesar de ser, de algum modo, imprudente e de arriscar a que o destacamento fosse detectado, tinha combinado com o Joaquim que o deixaria tentar chegar junto da bajuda antes de desencadear o assalto. Teríamos ainda bastante tempo para os primeiros alvores e, de qualquer modo, não esperava que o PAIGC tivesse muitos guerrilheiros por aquelas bandas.

Estacionamos o destacamento, montamos uma segurança apertada e o Joaquim partiu sozinho, depois de combinarmos o lugar por onde devia regressar e o sinal para nos avisar da sua aproximação. Ao fim de meia hora o Joaquim, acompanhado pela bajuda e a sogra apareceram sem qualquer sinal e por uma direcção diferente da combinada. Só escaparam de ser abatidos porque o pessoal estava bem treinado. Com a alegria de ter encontrado a sua bajuda esquecera-se completamente do combinado. Felizmente, o pessoal que estava de vigia deixou que o grupo se aproximasse e reconheceram-no.

Trazia informações de que na tabanca não se encontrava pessoal armado pelo que decidi não a assaltar, contorná-la e seguir para um outro objectivo. O Joaquim seguiu para a frente da coluna nas suas funções de guia enquanto a bajuda, que se chamava Sábado e era realmente muito bonita e a sogra ficaram incorporadas na coluna algumas posições atrás de mim. Numa paragem o Joaquim veio até junto dela e, ao vê-los juntos, tive por momentos um sentimento de inveja e frustração por todos nós nos encontrarmos tão longe de quem nos era caro.

Enquanto estivemos em Ganturé o Joaquim nunca mais me serviu de guia. Era corajoso e seguro, conhecia muito bem a região, mas via-se bem que o fazia contrariado. Acabou por conseguir alguma terra para cultivar e foi organizando na vida. Nos primeiros tempos, se não fossem as ajudas que lhe dávamos e algum dinheiro por fora, teria possivelmente passado muito mal. Mas depressa começou a ter colheitas, a criar alguns animais e a ter uma vida mais estável.

Entretanto o destacamento foi deslocado para outras bandas e só regressamos ao fim de alguns meses. O Joaquim esperava-me na ponte-cais de Ganturé. Feliz, informou-me logo que a Sábado estava grávida.

Esta é uma pequena história, quase uma não história, no meio de uma guerra e de uma disputa política. Um homem e uma mulher acabam por optar por deixar de viver numa das margens do rio Cacheu, território controlado pelos que lutavam pela independência e expulsão das tropas coloniais, para se mudarem para a outra margem que essas tropas dominavam e controlavam. Alguns pretenderão inferir daqui generalizações políticas e históricas em relação à época e ao problema colonial. Possivelmente, poderíamos fazê-lo tanto mais que havia gente que suspeitava que o Joaquim poderia ser simpatizante do PAIGC e eu próprio não tinha grandes dúvidas que continuava a manter ligações com familiares que se mantinham na margem Sul. Mas estávamos numa guerra contra-revolucionária, em que um grupo de militares portugueses estacionavam por um período curto numa terra que lhes era estranha enquanto a população que por lá habitava tinha elos, ligações e disputas que duravam há séculos. Viver com estas contradições era o quotidiano naqueles tempos e naquele tipo de guerra. Para além disso, sabíamos e tinha-o ouvido nas palavras do próprio General Comandante Chefe na cerimónia da recepção do Destacamento, que a guerra estava já num estádio em que não havia solução militar e Portugal teria de encontrar uma saída política para o problema colonial. O que este casal, como milhares de casais que sem vêm no meio de uma guerra que não compreendem e não a sentem como deles, ou que não querem participar nela com armas na mão quis, foi encontrar um lugar para viver e criar os seus filhos com alguma paz e segurança. E, apesar de tudo, na Tabanca Nova, ali perto da base dos fuzileiros, a vida acabava por ser bem mais calma e segura do que no seu acampamento no Tiligi, escondido no meio do arvoredo, para onde os obuses de Bigene disparavam, os aviões lançavam bombas, onde os guerrilheiros do PAIGC, que viviam lá por perto, apareciam e também não os deixavam viver em paz. E, quando os fuzileiros resolviam aparecer havia guerra com os guerrilheiros e eles, a população, tinham de fugir e de se esconder na mata até a calma voltar.

 

Em jeito de nota, algumas palavras sobre populações e reordenamentos na Guiné.

 

As populações, numa guerra revolucionária como a que travamos na Guiné, são o alvo principal que um e o outro lado pretendem conquistar e manter sobre o seu controlo. Os reordenamentos de populações não foram uma das prioridades da política colonial do General Spínola, mas existiam e promoveram-se alguns durante o seu consulado. Nos primeiros anos as suas políticas causaram algumas dificuldades no desenvolvimento da estratégia do PAIGC que, em resposta, endureceu a guerrilha. Só superficialmente estudei o problema dos reordenamentos, mas durante a comissão tive algumas vezes de lidar com ele e de fazer opções. Conheci durante a comissão, entre 1971 e 1973, dois reordenamentos, o da Tabanca Nova, entre Bigene e Ganturé, onde se situava a base dos fuzileiros, já estabilizado e com as vidas dos seus habitantes mais ou menos organizadas e os primeiros tempos  do reordenamento de Gampará, em que as populações que não se refugiaram na área controlada pelo PAIGC, ainda viviam em acampamentos improvisados à volta do acantonamento das nossas tropas, enquanto se construíam as suas futuras casas.

Visitava com alguma frequência a Tabanca Nova. A população, de várias etnias, vivia pobremente, mas eram pouco incomodados pelas incidências da guerra. Vinham com alguma frequência à enfermaria da base procurar a ajuda do enfermeiro e prestavam-nos alguns serviços. Que me lembre, só por uma vez caíram lá por perto alguns foguetões. Era bem recebido quando lá ia, as pessoas falavam comigo sobre assuntos triviais e assisti a alguns roncos (festas em que o que de mais visível acontecia eram cantos e danças comemorando algum acontecimento). Os miúdos da Tabanca Nova entravam e saíam à vontade na base e andavam por todo o lado sem constrangimentos aguardando o fim das nossas refeições para se alimentarem. O pessoal tratava-os geralmente bem e só uma vez tive de mandar parar uma brincadeira de um marinheiro que estava a dar uma divertida instrução de ordem unida aos putos que se prolongou para além do razoável. Não tinha dúvidas que o PAIGC tinha ligações com elementos da Tabanca Nova, que algumas das lavadeiras que regularmente vinham trazer e levar roupa passavam voluntária ou involuntariamente informações. Por isso, mantinha algumas regras de segurança, uma das quais era a de só comunicar o objectivo das operações a um grupo muito restrito de elementos do Destacamento e mantê-lo reservado até ao momento do breefing. De qualquer forma, era muito difícil disfarçar para o exterior quando ia haver uma operação porque os preparativos do pessoal acabavam sempre por ser visíveis.

As populações capturadas eram normalmente encaminhadas para junto de familiares ou de elementos das suas etnias em Bigene ou na Tabanca Nova. Nos primeiros tempos da comissão quando aprisionávamos elementos da população entregava-os ao Comando Operacional e procurava acompanhar a sua primeira fase de adaptação, embora essa não fosse uma competência do Destacamento. Alguns prisioneiros foram maltratados para se obterem informações e isso incomodou-me. Outros acabaram por se estabelecer e encontraram formas de levar uma vida normal. Outros ainda, ao fim de algum tempo, perdíamos-lhes o rasto e desapareciam, conseguindo possivelmente voltar às suas antigas povoações. Ao fim de algum tempo na Guiné, tendo passado a conhecer como funcionavam os processos de relacionamento com as populações e dos reordenamentos, sempre que fazíamos prisioneiros civis passei, na altura do reembarque, a dar-lhes a opção de ficarem ou virem connosco. As reacções foram diversas. A maior parte resolvia ficar, correndo imediatamente para a mata, às vezes com manifestações efusivas de alegria, mas alguns vinham connosco de livre vontade.

 

5 comentários:

O Jorge Lourenço Goncalves disse...

Estória enternecedora!
Muito bem, Selva!
Continua nestas águas onde tão bem navegas...
Um forte abraço

O speedy disse...

Relato de um “guerreiro “ humano. Mostra o outro lado do militar numa guerra de guerrilha. Obrigado pelo teu escrito. Será bom que os nossos netos leiam isto.
Um enorme Abraço

O José Cruz disse...

Selva; não deixes de passar para o papel estas tuas excelentes estórias e organiza-as tanto quanto te fôr possível, para além do prazer que nos dás em lê-las aqui.
Um grande abraço.

O Luís Silva Nunes disse...

Mais uma instrutiva "estória" ... muito bem!

O A.R.Costa disse...

Um texto muito interessante e muito bem escrito a recordar o rio Cacheu, por onde tantos de nós navegamos.