sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

A cerimónia de recepção no Cumeré

 Um céu cinzento ameaçando chuva, o calor húmido do meio da manhã reforçado pelo sol que espreita por entre as nuvens, quente e impiedoso e nos bate de frente, torna a nossa pele pegajosa, o suor transpira para a farda branca. Em formatura, os periquitos e alguns veteranos que regressam a Lisboa, esperam a chegada do general. Os dois destacamentos, DFE 3 que regressa a Lisboa e DFE 8 acabado de chegar ao TO, à sua esquerda, depois um batalhão do Exército e por último a companhia do Capitão Salgueiro Maia com os seus lenços pretos. O tempo vai passando, caem alguns soldados que rapidamente são retirados em maca para a enfermaria.

Tento distrair-me, observando o aquartelamento e as movimentações que se vão desenrolando à minha frente.

Finalmente ouve-se o som dos motores de um helicóptero que rapidamente se aproxima, dá uma volta graciosa por sobre a formatura e aterra na parada. Logo que as pás param de rodar, sai, facilmente reconhecível pela monóculo que usa no olho direito, o general Spínola, vestido de camuflado, com uma enorme boina a cobrir-lhe a cabeça, logo seguido de dois ou três militares, também eles de camuflado com armas empunhadas. Um circo bélico que, por uma qualquer associação de ideias, me fez lembrar uma descrição, lida algum tempo atrás, no livro "Os Pretorianos" de Laterguy, relacionado com a guerra da Argélia. Todos aqueles homens vestindo fatos camuflados, empunhando espingardas metralhadoras, com uma atitude bélica como se estivessem prestes a entrar em combate, transmitiu-me a sensação de estar a assistir a uma peça de teatro, encenada para impressionar os pobres diabos acabados de chegar e ainda virgens para a guerra que os esperava. Um deles, que depois vim a conhecer, chamou-me especialmente a atenção, óculos escuros, postura marcial, a coronha da espingarda apoiada na cintura com o cano a apontar para o alto. A figura do general Spínola já a conhecia dos noticiários da televisão, mas a minha atenção concentrou-se nas luvas que calçava e perguntei-me a razão para as usar com o calor que se fazia sentir. Os cornetins executam os toques da praxe e as tropas em parada respondem com os sucessivos movimentos e finalmente o general começa a passar a revista. Caminha lentamente, passo solene, por vezes pára e olha fixamente o militar que está em sentido à sua frente, o tempo parece não passar, desmaiam mais alguns homens e o general contínua a sua marcha imperturbável. Para à minha frente intermináveis segundos, olha-me fixamente, procuro não desviar o olhar, mas sinto-me incomodado. Depois prossegue a revista. Finalmente os toques para descansar e o general sobe a um palanque para falar às tropas.

“Soldados e marinheiros, marinheiros e soldados …”. Era assim que me tinham dito que começava sempre o discurso e foi assim que aconteceu. Do discurso lembro-me só do tom apologético e patriótico, a voz solene, trémula e rouca quando pronunciava a palavra "pátria". Quando acaba o discurso as forças em parada desfilam e depois destroçam. As conversas entre o pessoal, finalmente descontraído, centram-se no tempo que tudo aquilo demorara e no sermão do Caco Baldé que nunca mais acabava (Caco Baldé era a forma como o general Spínola era referido entre as tropas).

Os oficias e sargentos são convocados para uma sala. Estamos todos sentados quando o general entra, o coronel ordena sentido, toda gente se levanta e o general dirige-se para a mesa que estava colocada no fundo da sala. Senta-se e todos se sentam. O discurso parece-me agora diferente, continua num tom patriótico, de defesa intransigente da pátria (palavra que pronuncia com a mesma entoação rouca e solene), mas vai dizendo que Lisboa (é assim que se refere ao governo de Portugal) tem de olhar para a realidade do que se passa nos nossos territórios ultramarinos e alterar as suas políticas enquanto há ainda tempo. Lisboa tem de entender que os tempos mudaram e que os povos do nosso ultramar têm legítimas aspirações em participar do seu futuro dentro de uma pátria pluricontinental e multirracial. Findo o discurso, manda sair os sargentos e oficiais subalternos ficando só os capitães e comandantes de unidades. Desta vez o discurso é curto, mas mais assertivo. Refere a gravidade da situação militar e política e a necessidade imperiosa de Lisboa mudar de política enquanto há tempo e condições para negociar.

O general retira-se. Vamo-nos despedindo dos camaradas do Exército que tínhamos conhecido na viagem. Demorei algum tempo a trocar algumas impressões com o capitão Salgueiro Maia que tinha sido nosso companheiro de mesa e de amenas cavaqueiras a bordo durante a viagem e desejar-lhe boa sorte. A convivência diária no Angra do Heroísmo tinha criado alguma empatia entre nós e a troca de ideias sobre o que nos esperava na Guiné, apesar de algumas diferenças de opinião, deixara também um sentimento de solidariedade pois ambos começávamos já a tomar consciência dos tempos difíceis que nos esperavam. Está bastante mais perplexo do que eu com as palavras que acaba de ouvir ao general. "Afinal, parece que vocês estavam mais bem informados do que eu" é a formulação simples e directa como define o que acaba de ouvir. Voltamos a encontrar-nos alguns meses depois numa breve conversa de circunstância na messe de Exército, em Bissau e reconheci-o, três anos mais tarde, no pequeno ecrã de uma televisão na câmara de oficiais do S. Gabriel, no dia 25 de Abril.

4 comentários:

O Luís Silva Nunes disse...

Mais um episódio bem real e contado com a qualidade a que já nos habituou ... felicitações ao autor.

O Jorge Lourenço Goncalves disse...

Continuas um optimo escritor de memórias de guerra!
Continua por favor...
Grande abraço

O José Cruz disse...

Mais um excelente relato do combatente/cronista AFS. Com um abraço, as minhas felicitações.

O speedy disse...

Continuas com as tuas brilhantes estórias. Espero ler mais algumas. Um abraço.