terça-feira, 9 de março de 2021

Um livro improvável, num local improvável

 Quando o DFE8 e o DFE 21 se encontravam em Gampará, a sua principal missão era a realização, dia sim dia não,  de uma operação de patrulhamento na região onde se iria construir o reordenamento de Ganjauara com o objectivo de manter longe do acantonamento das nossas tropas, os guerrilheiros do PAIGC que se encontravam concentrados a sul da península, do outro lado do rio Pedra Agulha, e de controlar alguns núcleos da população que se mantinham dispersos, procurando sobreviver próximos das suas antigas tabancas que tinham sido destruídas na ocupação inicial.

Como os guerrilheiros do PAIGC também passavam para Norte do rio Pedra Agulha para efectuarem os seus patrulhamentos, montarem emboscadas nos nossos percursos e por vezes atacarem o nosso acantonamento, estas operações, apesar de se terem tornado rotineiras, obrigavam, no entanto, a um constante estado de alerta e um cuidado extremo na escolha dos percursos, não repetindo itinerários e andando sempre a corta-mato com a finalidade de evitar não só emboscadas, como minas colocadas nos trilhos. Como, para além disso, o capim estava queimado em quase todo o lado e os percursos eram normalmente longos, as operações eram muito cansativas, demoradas e provocavam dificuldades respiratórias em muitos homens pelo pó de terra queimada que pairava no ar ou que se levantava pela nossa movimentação. Aliás, foi num cruzamento destes trilhos, que nós bem conhecíamos e sempre contornamos, que morreram por rebentamento de minas, uns dias depois de abandonarmos Gampará, alguns paraquedistas, durante a operação conjunta PATO AZUL A, na região do Quinara, em que participaram os DFE 8, DFE 21 e a Companhia de Paraquedistas que nos tinha rendido. Nessa operação, os paraquedistas partiram de Gampará e nós saímos de Fulacunda reembarcando no rio Geba.

Numa dessas operações de rotina, o objectivo era vistoriar a tabanca de Tumaná, que se localizava a sul da península e fora atacada e destruída logo nos primeiros dias da ocupação. Há já bastante tempo que lá não se ia e havia informações recentes da presença de população e guerrilheiros. Uns dias antes, um avião de reconhecimento tinha avistado sinais de trabalhos agrícolas nas proximidades. Ao estudar a carta verificamos que aquela região era um pouco mais acidentada do que o restante território, com algumas pequenas elevações nas proximidades da tabanca que poderiam ser bons locais para observar a nossa progressão e montar emboscadas. Por isso, partimos pouco depois do jantar e fizemos uma progressão muito desviada de modo a abordar Tumaná vindos de Sul, aproveitando essas elevações e não por Norte, como seria previsível por alguém que esperasse uma incursão nossa na região. Chegamos próximo de Tumaná ainda a noite estava bastante escura e procuramos o cimo de uma pequena elevação para esperar os primeiros alvores. Quando já estávamos estacionados, um cão começou a ladrar lá em baixo, pelo que, embora ainda com pouca visibilidade encaminhamo-nos imediatamente em direcção à tabanca. Avançamos procurando manter o maior silêncio possível, mas quando estávamos relativamente perto foram dados alguns tiros de aviso. Aceleramos a marcha e pouco depois penetramos no interior da tabanca que já encontramos completamente abandonada. Enquanto o primeiro grupo de combate a atravessava rapidamente na direcção em que supostamente teriam seguido os fugitivos, o outro grupo fez uma rápida vistoria, em que se verificou que, apesar de destruída e queimada, havia muitos vestígios recentes de estar a ser utilizada. Terminada a revista saímos do interior da tabanca que, pouco depois, era alvo de uma salva de morteiro.

Reunido o Destacamento, tomamos o caminho de volta seguindo pela orla da mata que circundava as antigas terras de cultivo, onde os vestígios de trabalhos recentes eram bem visíveis. Após alguns quilómetros de marcha fizemos uma pausa para descansar num local que pareceu seguro e com boas sombras. Tinha acabado de me encostar a uma árvore e preparava o tabaco e o cachimbo para uma já tardia e desejada cachimbada, quando um marinheiro se aproxima e me entrega um livro que tinha encontrado numa das casas que revistara dizendo: “Oh Comandante! encontrei este livro estrangeiro!”. A minha surpresa foi enorme quando me deparei com uma edição do livro “Le Matérialisme Dialetique” de Henri Lefevre, exactamente a mesma edição que eu tinha comigo e que me fora comprada, em França, por um camarada que estava na missão para a construção das Fragatas classe João Belo.

Abri-o e, logo na primeira página, vejo uma assinatura. Depois, ao folheá-lo encontro no meio do livro, uma fotografia de uma mulher, nova, olhos expressivos e esboçando um ligeiro sorriso. No verso da fotografia, para além do mesmo nome e uma data, via-se ainda um carimbo da uma casa fotográfica de Praga.

O livro fora bastante usado e trabalhado, tinha frases sublinhadas, parágrafos assinalados com um traço vertical na margem e algumas setas e pontos de interrogação apontando para partes do texto. Uma ou outra página tinha anotações escritas em português. A leitora utilizava um lápis preto, sempre bem afiado.

Enquanto saboreava o fumo do cachimbo fui folheando, aleatoriamente, o livro fixando-me nos sublinhados e anotações da leitora. Progressivamente as frases sublinhadas, os parágrafos assinalados e as anotações foram-me despertando a curiosidade. Um livro em que o leitor assinala factos, ideias e anota as suas críticas revela muito do que pensa e sente esse leitor e foi o que quase inconscientemente eu me pus a fazer naquele lugar perdido nas matas da Guine, a tentar penetrar no pensamento e nos sentimentos daquela leitora.

Senti, nessa ocasião, uma espécie de sentimento de solidariedade por alguém, que combatia do outro lado, mas com quem possivelmente partilharia alguns pensamentos e sonhos de um mundo mais justo, mais livre, mais igual e solidário. Hoje, quando esses sonhos, os dela e meus, se encontram nos nossos países e no mundo, em grande parte frustrados e traídos, volto a sentir a saudade e a nostalgia daqueles anos, em que eramos jovens e idealistas e em que, apesar da guerra, acreditava que viríamos a viver num tempo e num mundo melhores.

Perdi um pouco a noção do tempo. Enchi novamente de tabaco o cachimbo e continuei a procurar e tentar perceber os sublinhados do livro e penetrar no pensamento da leitora.

Ao fim de algum tempo, o Destacamento acabara por assumir o hábito de que as pausas que fazíamos correspondiam, mais ou menos, ao tempo de uma cachimbada. É o oficial, comandante do grupo de combate que seguia na frente que, apercebendo-se que a pausa estava a ser mais longa do que o costume, me pergunta por rádio se seguimos caminho, ou montamos uma emboscada naquela posição. Terminamos a pausa e caminhamos de regresso a Ganjauara.

Uns dias mais tarde, vim a saber que a dona do livro era, provavelmente, a comissária política responsável pela organização das mulheres naquela região.

Guardei o livro e a fotografia no quarto que tinha atribuído nas Instalações Navais de Bissau, juntamente com alguns objectos que ia recolhendo nas operações ou comprando nas localidades por onde ia passando, a que atribuía alguma qualidade artística ou valor histórico. Quando regressei a Bissau, poucos dias antes do fim da comissão, deparei-me com o meu quarto devassado e quase vazio.  Alguém tinha conseguido entrar e retirar tudo aquilo que lá guardava, incluindo mesmo alguma roupa civil e militar. 

Regressei a Lisboa, depois de 21 meses na Guiné, com algumas fardas, alguma roupa civil e algum artesanato e peças de panos africanos que à última hora fui comprar nas lojas locais para oferecer à minha mulher. Mas restaram muitas memórias e, bem inscrita, a de uma mulher, cujo nome esqueci, que combatia do outro lado e que andava a ler um livro que também fez parte das minhas leituras.

3 comentários:

O José Cruz disse...

Parabéns Ferreira da Silva. Mais uma excelente história, esta não humorística mas das que fazem pensar e muito, das decisões dos que mandam aos actos dos que têm de obedecer.
Uma das características dos militares é a obediência aos seus superiores. Mas também sabem pensar.

O Jorge Lourenço Goncalves disse...

Muito bom! Descobrimos mais um escritor no OC! Continua "Selva". Grande abraço

O Luís Silva Nunes disse...

Mais uma instrutiva narrativa ... felicito o autor!