O
Destacamento era ainda relativamente periquito na Guiné. Estávamos em Ganturé,
na margem Norte do rio Cacheu, e realizávamos operações em que desembarcávamos
e reembarcávamos nas margens desse rio ou dos seus afluentes. Por norma, os
desembarques efectuavam-se de noite e numa zona de tarrafo denso (a designação
correcta, de acordo com o dicionário, é tarrafe). O Imediato do destacamento
era um jovem e destemido oficial a quem competia, sempre que o seu grupo de
combate seguia à frente, abrir o caminho. Era por isso normal que muitas vezes experimentasse
dificuldades e ficasse preso no intrincado das raízes, troncos e ramos do
tarrafo.
Num
desses desembarques, deixou que o seu relógio Aquastar, que a Marinha
distribuía aos oficiais fuzileiros, ficasse preso num ramo, partisse a correia
e se perdesse no lodo. Redigida a respectiva ocorrência, esta mereceu um
lacónico despacho de "Abata-se" que, como era do normativo, foi
comunicado ao Comando da Defesa Marítima que o homologou com um também lacónico
“Concordo”. Ora aconteceu que, duas ou três operações depois, ocorreu o mesmo
incidente, o Imediato perdeu o novo relógio que lhe tinha sido atribuído. Nova
redacção de ocorrência, de novo o lacónico despacho: "Abata-se", nova
nota a comunicar o ocorrido e a solicitar a concordância com o respectivo abate.
Só
que, desta vez, o despacho não só não foi homologado como em resposta recebemos
uma nota assinada pelo do 2º Comandante da Defesa Marítima, que realçava o
facto de o relógio ser um objecto da fazenda pública, merecedor de cuidados
especiais, que a perda de dois relógios num tão curto período e pelo mesmo
oficial revelava pouco cuidado e mesmo algum desleixo, pelo que devia
justificar com maior detalhe o seu abate ao inventário.
Comecei
a andar a matutar na forma de responder ao que me era pedido. Apesar de estar
há poucos meses na Guiné, andava já às turras com a burocracia de Bissau e a
sua dificuldade em compreender que os Destacamentos de Fuzileiros não tinham orgânica
e estrutura com a mesma capacidade para responder às exigências administrativas
e burocráticas dos outros tipos de unidades navais ou mesmo de uma Companhia de
Fuzileiros. Os Destacamentos eram constituídos simplesmente por 80 combatentes.
Todas as respostas administrativas e burocráticas que íamos encontrando para as
situações que enfrentávamos eram improvisadas e de puro desenrascanço naval.
Ao
fim de algum tempo de maturação redigi uma nota justificativa em que procurava
passar, com uma pequena ponta de azia humorada à mistura, o que faziam os
destacamentos e como os materiais se podiam extraviar. Guardei uma cópia entre
os papéis que trouxe comigo da Guiné. Alguns anos depois, um camarada e amigo
que a tinha lido em Bissau quando estava a prestar serviço no Comando da Defesa
Marítima da Guiné e por várias vezes a comentara comigo, pediu-me
insistentemente para a encontrar. Encontrei-a e emprestei-lha para tirar uma
cópia, mas como ele estava em serviço fora de Lisboa não ma devolveu
imediatamente. Eu esqueci-me, ele possivelmente também a foi guardando entre os
seus papéis. Despediu-se inesperadamente da vida fora de tempo, eu perdi um
amigo e a nota também desapareceu. Mas vou tentar reproduzi-la, porque de
tantas vezes falar nela guardei-lhe os traços principais.
Começava
com uma introdução que pretendia didáctica:
"O
tarrafo ou tarrafe é uma vegetação do tipo arbustífero (Rhizophora racemosa)
da família das Rizoforáceas, que se encontra nas zonas lodosas das orlas de
marés nas margens de rios da Guiné. No rio Cacheu e seus afluentes as duas
margens estão quase completamente cobertas por estes arbustos que formam uma
mata por vezes muito densa, atingindo alturas consideráveis. Em alguns locais
esta densa cobertura vegetal de tarrafo é interrompida por clareiras nas quais
só há capim e pouca vegetação dispersa.
Embora
estas clareiras possam parecer os locais mais fáceis para os desembarques dos
fuzileiros quando são lançados em operações nas margens do rio Cacheu ou dos
seus afluentes, não são por norma utilizadas porque podem estar minadas pelo
inimigo. Pode também acontecer terem sido minadas pelas nossas forças, para impedirem
a passagem do inimigo para o interior do território da Guiné e, mesmo quando os
campos de minas são levantados, sabemos que podem lá ficar algumas por se terem
movimentado com as marés, ou ficarem perdidas ou mesmo esquecidas. E, por vezes
também se ouvem rumores da existência, por estes lados, de campos de minas não
assinalados.
Por
estas razões os Destacamentos escolhem para desembarcar zonas de tarrafo denso.
Os desembarques ocorrem quase sempre durante a noite e de preferência em noites
sem lua e o mais escuras possível. Desta forma o desembarque de um Destacamento
constitui um enorme desafio físico para os homens que se têm de deslocar no lodo
por entre um emaranhado de raízes, troncos e ramos, tendo quase sempre de subir
pelas árvores até alturas consideráveis. Nesta progressão, que seria um enorme
desafio mesmo para qualquer ginasta olímpico, os fuzileiros ficam constantemente
presos nos ramos e caem de grandes alturas embatendo várias vezes na ramagem antes
de aterrarem no lodo. Quando chegam ao lodo, depois de uma queda forçada e muito
sacudida, para além de serem imediatamente atacados por enormes formigas que
lhe sobem pelas pernas e se vão acolher junto da carne tenra dos órgãos sexuais,
região do corpo humano porque parecem nutrir uma especial apetência e onde se
fixam com as suas fortes presas, constatam que perderam a boina, a espingarda,
o cinturão com as cartucheiras, a faca, o cantil e o próprio relógio que, por ficarem
presas num qualquer ramo, se soltaram ou partiram. Destes objectos a espingarda
e o cinturão com os seus acessórios acabam, com maior ou menor esforço, por ser
quase sempre encontrados, tanto mais que são ferramentas indispensáveis para a
continuação da operação. A boina, também é muitas vezes recuperada porque costuma
ficar pendurada num ramo. Já o relógio, quando a correia se parte, afunda-se
irremediavelmente no lodo. Em resumo, de todo o material que um fuzileiro
transporta nas operações só o fato camuflado e as botas não correm o risco de
se perderam porque estão bem presas ao corpo usador.
Na
operação "Carapau", a que se refere a ocorrência em questão, o Destacamento
desembarcou, noite cerrada, num local que se revelou ser muito denso e de
difícil progressão, tendo sido necessárias cerca de três horas para todos os
homens se desembaraçarem do tarrafo, atravessarem a bolanha e chegarem à orla
da mata.
O
oficial Imediato, portador do relógio, objecto da proposta de abate, comandava
o primeiro grupo de combate, sendo o segundo homem e muitas vezes o primeiro na
coluna a abrir caminho, correndo muito mais riscos de quedas e acidentes do que
os que lhe seguiam as passadas. Foi o que aconteceu numa das muitas quedas que sofreu,
quando a pulseira do relógio se prendeu num ramo, se partiu e o relógio caiu no
lodo e desapareceu.
Em
face do exposto, solicito o abate do relógio referido na ocorrência."
A
nota foi expedida e a resposta demorou mais tempo do que o normal. Finalmente
recebemos uma nota com o despacho do 2ª comandante: "Abata-se. Não se
distribua mais nenhum relógio ao oficial referido na ocorrência".
Deixo
à imaginação de cada um, os comentários, a animação e o riso que este despacho
proporcionou à dezena de oficiais da Marinha e do Exército que se encontravam por
aquelas paragens. Se, até à chegada do despacho, a questão era só do meu
conhecimento e do Imediato, a partir daqui toda a troca correspondência passou
a ser o facto do dia nas messes da BAPATGANTURÉ, na câmara da LFG atracada na
ponte-cais e passou muito rapidamente para o pessoal do COP3 e da Companhia do
Exército sedeados em Bigene.
Para
mim, a questão que se me colocava era a de saber como é que o imediato ia
cumprir as suas funções sem relógio. E para mais, temia que ele viesse também a
perder o seu muito estimado ROLEX, oferecido muito carinhosamente pela sua mulher
alguns dias antes da partida para a Guiné e que vinha a usar nas últimas
operações. Depois de alguma ponderação, pedi para me trazerem o bloco de
mensagens e redigi uma mensagem para o Comando da Defesa Marítima da Guiné nestes
termos:
"SEU
(número e data da nota do despacho do 2ª COM). ACTIVIDADE OPERACIONAL
DESTACAMENTO EXIGE OFICIAIS TENHAM ACESSO PERMANENTE A HORA LOCAL. MOTIVOS
OPERACIONAIS SOLICITO ENVIO IMEDIATO UM IMEDIATO COM RELÓGIO".
PS
– O Imediato não voltou a perder mais nenhum relógio. Confessou-me, muitos anos
depois, que à cautela mandava sempre os seus camuflados a um alfaiate para lhe
fazer um bolso com fecho éclair na parte interior do casaco e que, antes dos
desembarques, guardava lá o relógio só o voltando a pôr no pulso quando chegávamos
à mata.