Quando recordo
os tempos em que vivi na Base de Patrulhas de Ganturé (BAPATGANTURE),no Norte
da Guiné, recupero sempre alguns Destacamentos de Fuzileiros, as LFG's (Lancha
de Fiscalização Grande), as LDM’s (Lancha de Desembarque Média) que patrulhavam
o rio Cacheu, os botes correndo o rio a toda a força dos seus motores fora de
borda ou derivando silenciosamente com as correntes da maré, os militares do
Exército e as populações que se encontravam em Bigene, Tabanca Nova, Binta e
Barro e, obviamente, os encontros e desencontros com os guerrilheiros do PAIGC
e as populações sob o seu controlo.
A presença
de uma LFG atracada na ponte-cais de Ganturé ou navegando no rio, fazendo ouvir
os seus motores e o poder de fogo das suas Boffors, quando passavam por uma
clareira, apoiando um reembarque depois de uma operação, largando botes que
depois desciam ou subiam o rio à deriva e emboscavam no tarrafo junto de uma
clareira, foi uma constante nos meses em que o DFE 8 esteve estacionado em
Ganturé, atribuído ao COP 3 (Comando Operacional nº 3). Ao longo desses meses,
a actividade operacional e a convivência diária foram estreitando afinidades e
laços de amizade que muitas vezes vinham desde os tempos da Escola Naval.
Com todas
as LFG's, o DFE 8 viveu muitos acontecimentos de boas e más memórias, foi
transportado ou recolhido em operações, embarcou com todo o seu equipamento
para um ou outro aquartelamento e também convivemos longas horas com camaradas
e amigos. Mas há camaradas, acontecimentos e momentos que nos deixaram marcas
que recordamos com mais frequência e afectividade.
Foi o que
aconteceu, quando, um dia destes ao folhear alguns dos papéis que guardo dessa
época, encontrei uma curta e lacônica mensagem, enviada no rescaldo de uma
operação realizada na margem Sul do rio Cacheu, que me recordou um episódio em
que um dos intervenientes foi um saudoso amigo, na altura Comandante de uma
LFG. No rasto desta memória foram surgindo muitas outras relacionadas com a
ligação estreita que os Destacamentos de Fuzileiros estabeleciam com as LFG´s e
LDM's que estavam em missão no rio Cacheu.
O DFE 8
cruzou-se várias vezes com essa LFG durante a sua comissão na Guiné. Foi ela
que nos foi recolher a Buba e nos acarinhou e alentou depois de uma operação
desgastante que o General Spínola determinou como correctivo para supostos
comportamentos menos correctos de um marinheiro do destacamento. Recordo,
também, uma outra situação, na região da Caboiana, perto de Vila Cacheu, quando
o destacamento caiu numa emboscada que provocou vários feridos e nos
encontrávamos em dificuldades para os tratar e evacuar. A LFG, que regressava a
Bissau depois de terminar a sua missão em Ganturé, estava já a sair a barra,
mas ao aperceber-se, através das comunicações interceptadas, do problema que
enfrentávamos e ter entrado em contacto rádio conosco, alterou imediatamente a
sua rota e veio esperar na foz de um afluente do Cacheu um bote onde tínhamos
conseguido embarcar os feridos, transportando-os para Vila Cacheu onde lhes
prestaram os primeiros socorros e de onde foram depois evacuados para Bissau.
Mas vamos
então à estória da mensagem. Tudo começa num reembarque em botes num dos
afluentes do rio Cacheu, depois de uma operação em que se assaltou um
acampamento do PAIGC. O grupo de combate que seguia à frente do Destacamento
atravessou uma bolanha com cerca de 300 metros para estabelecer a ligação com
os botes, enquanto o grupo de comando e o segundo grupo montavam segurança na
orla da mata. Estabelecida a ligação com os botes o pessoal que estava na mata
arrancou rapidamente seguindo o trilho aberto no capim pelo primeiro grupo.
Quando estávamos a meio caminho rebentou, da orla da mata, ao lado do local que
acabávamos de abandonar, grosso tiroteio de armas ligeiras e RPG na nossa
direcção. Cada um procurou o abrigo possível e tentamos responder. No entanto,
os guerrilheiros, que eram numerosos, não se calavam, a nossa posição no
terreno não oferecia grandes abrigos e a situação ficou mesmo muito
desconfortável. Entretanto, o 1º grupo, que já tinha embarcado nos botes, volta
para terra procurando envolver a posição ocupada pelo IN. Logo que alcançaram
um local favorável, abriram fogo o que permitiu que o grupo que tinha sido
emboscado, reagisse e regressasse à mata. Nesta nova situação, os guerrilheiros
apesar de terem ficado debaixo de dois fogos não se calaram. Mas, pouco depois,
foi possível juntar ao nosso fogo o dos obuses de Bigene, porque, entretanto, um
marinheiro subiu para uma árvore de onde conseguia dominar todo o cenário,
chamou-me e, lá de cima, pude facilmente regular os obuses de Bigene. Ao fim de
duas obuzadas os guerrilheiros estavam enquadrados e com mais dois ou três
disparos dispersaram.
Entretanto
o grupo dos botes tinha navegado algumas dezenas de metros rio acima, tendo
alguns homens saltado em terra e conseguido também fazer fogo sobre o grupo de guerrilheiros.
O patrão
da LDM que se encontrava a pairar na foz do afluente do rio Cacheu à nossa
espera para nos transportar até Ganturé, ao aperceber-se do tiroteio que vinha
do interior, decidiu entrar resolutamente no rio pronto a intervir e apoiar no
que fosse necessário.
A LFG que
navegava por perto, mal ouviu os primeiros sons do combate que se estava a
travar, dirigiu-se para a foz do afluente do rio Cacheu, pronta para intervir
em caso de necessidade.
Era assim
que sempre reagiam as forças navais que se encontravam em Ganturé e que tinham
o rio Cacheu como teatro de operações. Ao primeiro sinal de combate no rio ou
em terra todas acorriam, a toda a força dos motores e das máquinas, ao local
onde se estava a travar o combate prontas a apoiar a unidade que estava em
acção (a embrulhar … como dizíamos na gíria local).
Com todos
ilesos, acabamos por reembarcar directamente para a LDM que penetrara no braço
do rio e abicara para nos recolher. Escoltados pelos botes chegamos ao rio
Cacheu, onde nos esperava a LFG. Todas as forças regressaram num alegre,
improvisado e desorganizado comboio naval a Ganturé com a sensação de alívio
por termos saído sem mossas daquela situação complicada.
Depois de
um banho retemperante e de vestir roupa lavada, dirigi-me para a messe, para
beber um café e uma bebida fresca e redigir o habitual e obrigatório RELIN relativo
à operação.
Para quem
não conhece ou não se lembra do significado do termo, resumo, dizendo que após
qualquer incidente que envolvesse as nossas forças e as do PAIGC ou após
qualquer operação, logo que possível, era enviada uma mensagem, o RELIN,
escrita numa linguagem simples e lacónica a dar conta dos acontecimentos e dos
seus resultados em relação ao pessoal e material das nossas forças e das forças
do PAIGC. O RELIN era complementado, quando os resultados o justificavam, por
um relatório circunstanciado do desenrolar da operação.
Ainda no
rescaldo dos acontecimentos que envolveram um razoável número de forças e
muitos movimentos, cansado da caminhada que acabara de fazer, a primeira
redacção do RELIN saiu muito pouco clara, desarticulada e dando uma ideia de
que o granel naquela operação tinha sido muito maior do que o que fora na
realidade. Não gostei e tentei uma segunda redacção que apesar de mais completa,
escorreita e arrumada, também não me deixou muito satisfeito. Mas, naquela
época, já andava sem grande paciência para fazer papéis destinados, a maior
parte das vezes, a satisfazer burocracias instaladas e acabarem arquivados num
qualquer dossier de um qualquer gabinete com ar condicionado em Bissau. E, por
isso, Ah! Que se lixe … vai mesmo assim … e foi!
Jantei,
estive algum tempo na roda do bar na conversa e depois fui até à câmara da LFG,
tomar um café, beber um whisky, conversar e jogar uma partida de brídege como
fazíamos muitas vezes quando a LFG estava atracada na ponte cais de Ganturé e
havia parceiros para isso. Contra o que era o seu costume, o Comandante
recebeu-me com cara de poucos amigos e logo me interpelou, rispidamente, pelo
facto de o RELIN que eu tinha enviado não fazer qualquer referência à acção da
LFG na operação. Dizia-me, com ar zangado, que quem o lesse ficaria a pensar
que o navio tinha permanecido calmamente atracado na ponte cais, enquanto a
algumas centenas de metros estava a decorrer uma acção de fogo. Penitenciei-me
imediatamente, pedi-lhe desculpa pela omissão, mas retorqui-me, sem mudar de
humor, que as minhas desculpas não evitavam que quem lesse a mensagem não
questionasse a forma como a LFG estava a cumprir a sua missão. Perante este
argumento pedi que me arranjassem um bloco de mensagens para reparar
imediatamente o lapso. O telegrafista trouxe à câmara uma cópia do RELIM e um
livro de mensagens. Reli o RELIM original e procurei encontrar uma nova redacção,
que sem mudar muita coisa, corrigisse a omissão. A verdade é que, a cada
tentativa mental de nova redacção, a situação embaraçosa e meio caricata em que
me encontrava, trazia-me à memória as imagens das correrias e peripécias da
manhã e associava-as às cavalgadas dos filmes de índios e cowboys que recordava
da minha adolescência nas matinés dos sábados no cinema de Vila do Conde. A
este estado de espírito acrescentava-se a adrenalina dos últimos
acontecimentos, os cafés e os whiskeys que, entretanto, fora bebendo e que começavam
também a fazer os seus efeitos. Não estava mesmo a encontrar uma forma de
contornar a mensagem original sem ter de redigir outra completamente nova e,
naquela ocasião, sentia-me completamente incapaz de o fazer. Ao fim de algum
tempo, a saída foi escrever um aditamento ao RELIN que saiu nestes termos:
"ADITAMENTO MEU RELIN "… " A LFG " … " TAMBEM LA
ANDOU."
O
telegrafista recolheu o bloco de mensagens e foi transmiti-la. Pouco depois,
enquanto estávamos em amena conversa, volta à câmara com as cópias da mensagem
enviada. Eu dobro a minha sem a ler e meto-a no bolso da camisa. O Comandante
da LFG lê-a atentamente, a sua expressão começa a alterar-se, levanta-se e
depois … explode … à sua maneira. Por mim, antes que qualquer coisa me caísse
em cima, saí a toda a velocidade da câmara e só abrandei quando, depois de
descer a prancha do navio, me vi na ponte-cais.
Chegado,
são e salvo, à base, anulei todas as mensagens anteriores e redigi um novo
RELIN com todos os pormenores da operação ou, como dizemos agora, politicamente
correcto. A meio da manhã seguinte, com a intervenção mediadora do Imediato,
recebi um convite para ir almoçar ao navio. A fúria (justificada, diga-se) da
noite anterior se não se tinha desvanecido, pelo menos abrandara. Naquela LFG,
como em todas as outras, os fuzileiros eram sempre bem-vindos e generosamente
acolhidos, mesmo quando, ao regressar de uma operação, esgotados, suados, sujos
e cobertos de lodo eram recebidos ao passarem da escada quebra-costas para o
convés com uma agressiva mangueira de incêndio apontada aos corpos que, não só
os limpavam do lodo para não sujarem o navio, como também os começavam a refrescar
antes de atingirem o local onde encontravam, à discrição, água fresca para compensar
a que desaparecera há muito dos cantis.